sangue

 Há um ano atrás, sei que fantasiava sobre a taça de vinho quebrando e eu finalmente conseguindo a oportunidade de me deliciar no próprio sangue e lágrimas. Comemorar a vitória de todas as dores sentidas da maneira correta, com a intensidade correta. Não bastasse a água que hoje me afoga sem misericórdia e sem que ninguém mais me estenda a mão por um segundo sequer, finalmente cheguei ao tão sonhado sangue.


Depois de semanas de conflitos irrelevantes e mesquinhos, finalmente o ato principal: lavar a louça, tirar o lixo, limpar o banheiro. Como quem tenta tirar tudo de mais sórdido que sente através do ambiente imundo e obscuro que lhe entorna. Ali em meio a tanta reticência, tanto cuidado para mascaras o descuido constante, veio como uma tempestade. Em menos de um segundo, o que era copo virou arma. 


Ela olhou o resultado da própria ação. Um mexer de braços um pouco mais brusco, um pensamento a menos e pronto, estava ali quebrado tudo que se tentava salvar. Eu, aqui do outro lado, encarei sedenta aqueles pedaços de vidro que refletiam a luz branca como se fossem os diamantes do anel que ela já não tinha no dedo. 


Pensei em caminhar por cima, claro. Em outro momento mais feliz, ou mais próprio, tiraria os chinelos, pisaria em cada um dos cacos para ficar perto dela, descalça, deixando que nossos DNAs se misturassem da única forma que a biologia permite. Hoje, temo admitir que agradeci pela barreira fatal criada entre eu e qualquer obrigação de demonstração de afeto. Não que não sinta, apenas já não sei demonstrar. 


Fiz o que pude, e o que foi pedido de mim. Num anseio incansável pelas próximas ordens, tirei meus chinelos, entreguei para ela, que não queria sentir aquele momento com a mesma violência, e finalmente caminhei em direção à minha salvação. 


Torcendo por uma tempestade há tanto tempo, tive que fugir da chuva apenas para ser confrontada com meu próprio sangue formando meu próprio rio bem debaixo dos meus pés. Senti o corte, identifiquei o tamanho e posição daquele pedaço de vidro, de copo, de bebidas e noites de festa agora quebradas. Caminhei mais, pisei mais forte, a cada oportunidade de pausa, admirava o rasgo na sola do meu pé que só aumentava. Olahava com desejo para o sangue que se espalhava tornando impossível distinguir os nervos, do sangue, da pele, da dor.


Finalmente, a dor.

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