fuga

 Já faz um ano e até hoje eu não consegui colocar em palavras exatamente o que aconteceu. Foram três vezes, na primeira, depois uma só, sete meses depois, cinco meses depois teve mais uma. Em todas essas, eu não consegui dizer nada, não tomei nenhuma atitude, não fiz nada. Pela primeira vez, fico sem reação, calculo quanto tempo é suficiente para responder uma mensagem. Não me interessa o jogo de desinteresse, o que eu gosto é de prolongar aquela sensação de ver que ele veio atrás de mim. 


Faz uma semana que aconteceu pela última vez e, meu deus como que eu quero que não seja a última vez. Ainda estou monotemática. Lembro das discussões sobre a pronúncia do meu nome e que na voz dele, no sotaque dele, tudo é gostoso. A vida realmente é uma delicia quando se morde o morango ao redor do mofo. 


Fico repassando cada palavra trocada, cada pergunta, ou o que eu lembro, já que, ele sóbrio, eu completamente fora de órbita. Mesmo sendo tudo como sempre, tudo foi novo. Um novo estranho, confortável, familiar. Ele sabia de mim sem que eu tivesse que contar. Eu sabia dele porque lembrava da primeira vez que perguntei e ele respondeu. 


Como sempre entre um sussurro e outro, a entrevista de travesseiro. Eu de bruços, ele olhando para o teto. Eu faço uma pergunta qualquer, ele diz alguma futilidade, eu faço algum comentário. Vejo ele respirar fundo antes de estender a mão para tocar no meu rosto. Eu sei que ele sabe o risco que corre. Tocar a água e não mergulhar é sempre o maior desafio da distância metafórica, literal. Entre vagarosos segundos observando cada detalhe dos nossos rostos tão próximos, nos forçando a lembrar que somos fadados a estar longe, uma mão no meu rosto. Toca, analisa, comenta. 


O tom não é exatamente elogioso. Não precisa ser. O elogio está no esforço. O comentário insiste em ser neutro para permanecer inofensivo. Não é suficiente, claro, para aquela sede que se tem depois de tantas horas lutando contra a intimidade. A mão se estende novamente. Essa que agora se tornou minha maior inimiga, a adaga que definitivamente traz em sua lâmina meu fim. Antes tão forte e aspera, nunca teve tanto poder de me machucar quanto agora, quando suavemente toca meus dedos. Logo eu, que resisti tão bravamente, ao cafuné, ao toque, ao abraço. Fui me render logo ao meu velho amigo. Já não sei se errei, mas fugi. Os dedos estúpidos que se entrelaçavam com os meus e enviavam choques por toda minha espinha no mais leve dos toques. 


Tirei minha mão rapidamente, falei alguma outra coisa idiota. Isso precisa continuar vazio, nem tudo pode ser tão profundo. Ele, como sempre, insiste. Eu me afasto, já não quero sequer compartilhar o travesseiro. Agora ele que vem, se aproxima, aquela maldita mão agora toca minha cintura. Existe aqui um excesso de pele e ausência completa de proteção contra todas essas contravenções. Será que ele não sabe do acordo tácito que firmamos na minha mente? 


Sem receio, ridículo, puxa seu corpo contra o meu. Desde a primeira vez, conhecia esse risco, para mim tão raro, do homem-menino que enxerga em mim mulher, sem menina. Não sei dizer porquê, justo ele que é tão grande para mim, gosta tanto de se fazer pequeno. Agora, depois de um ano de pura insistência, não tive escolha. Senti sua cabeça se esconder entre a minha e o travesseiro, o meu travesseiro. A mão na cintura me prendia naquele momento que estava proibido. A outra insistia em me fazer carinho, se entrelaçava no meu cabelo tão desgrenhado da noite que se tornou manhã, que já tocava na tarde. 


Perdi um segundo de respiração, não posso mentir. O choque foi grande demais para fingir que estava tudo bem. Se ele insiste em ignorar as regras que eu formei para mim, eu insisto também em respeitá-las. Mais uma vez, fugi. Um beijo de canto de boca foi o suficiente para recuperar a distância. 


Não dá para ignorar que agora não é como antes. Eu saí sem avisar, interrompi o beijo e fugi. Foram tantas tentativas tão falhas de me manter no raso. Mergulhei, enfim. 

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