casaco
Sábado à noite, recolhi as roupas do varal. Num puro ato de procrastinação, as roupas ali ficaram até o domingo. Tenho sido mais organizada, mas sem deixar de lado minha preguiça.
Domingo à noite, precisava urgentemente de algumas peças que ainda estavam na sacola e não no armário. Revirei o quarto, procurei pela calça de linho, a blusa de cetim, a calcinha de renda. Encontrei apenas o que não queria: o moletom. Logo nesse calor insuportável no meio do outono encontrei justo o moletom.
Ele estava lá, escuro, com pequenos detalhes que me permitem ter certeza que se trata daquele moletom. Ora, o que eu vou fazer agora com esse moletom? Ninguém precisa de um moletom quando a menor temperatura de maio é 27 graus. Ainda assim o encontrei. No meu momento mais distraída, mais leve, mais sozinha.
Fiquei encarando aquele agasalho e lembrando de tudo que fiz pela primeira vez, e tudo que me nego viver pela segunda. Nunca aceite casacos de ninguém. Uma mistura de obceção pela minha própria independência, medo do constrangimento de não servir e medo do romance que acompanha o cavalheirismo de um homem oferecendo um casaco a uma mulher.
Depois de tanta insistência, anos atrás, eu aceitei o moletom, pensando que finalmente aquele gesto poderia ser inofensivo. Afinal, era só um casaco, e eu sempre tenho frio. Hoje vejo que me enganei. Um ato qualquer, num momento de pura segurança, mais uma vez, se tornou avassaladoramente violento.
Tudo teve esse fim. Todas as minhas primeiras vezes, tão puras e leves, tornaram-se horrendas na memória de uma leitora assídua de romances.
Volto então à minha grande dúvida: se tudo que era bom ficou tão ruim quanto eu temia, por que ainda me nego outra experiência? Já vivi a mesma cena, já me ofereceram o casaco e eu neguei mais uma vez. A diferença foi que ninguém me agasalhou à força. Mesmo depois do fim, tive frio, e aceitei a oferta que me lembrou do passado. Por que ainda me sinto segura com alguém que só me machuca?
Há muito tempo que não sei a diferença entre segurança e memória, amor e costume. Tenho tentando reaprender o que é sentir, me afogo em compromissos, como fazia antes de me comprometer para sempre. Não fico em casa, não mantenho promessas, me atraso, me arrumo, sequer lembro os nomes de todas as pessoas que vivi nos últimos meses.
Ainda assim não consigo superar o casaco. Logo eu, que vivo numa constante necessidade de me cobrir, de carinho, de atenção, de pessoas novas. Vejo hoje tudo que me faltava mas ainda me falta confiança para olhar para frente. Tenho medo de um novo romance, me reservo às paixões momentâneas. Prefiro ser uma eterna boêmia a viver a morte do romantismo.
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