a menina dança

A mulher se arruma virada para a janela. Aproveita a luz do sol para focar em todas as suas imperfeições enquanto as esconde encarando o espelho pequeno. Já está vestida, uma minissaia jeans e uma blusa vermelha, num contraste e complemento perfeitos contra sua pele bronzeada. 


A mulher se imagina vista de trás, seu corpo levemente curvado para frente evidencia suas curvas perfeitamente abraçadas pela minissaia. Neste momento, a mulher queria que fosse observada e lamentou a própria solidão.


Contente com o que viu, tendo escondido tudo que não queria ter, saiu de sua casa no horário do almoço. Não queria comer, queria ser vista. Levava consigo sua bolsa, minúscula, onde não carregava nada, o cigarro enfiado na alça do sutiã e um rádio na mão.


Saiu de casa admirando a beleza que a contornava. Percebeu cada pedaço do asfalto antigo, as pedras da calçada, os rostos familiares embora nunca cordiais do centro de São Paulo. Quando sai do seu aconchego, sabe que não encontra simpatia. A mulher já aprendeu a esperar apenas a vista, torcer pelo afeto.


Ela admirava a praça e seus vendedores enquanto caminhava em direção ao seu lugar favorito. A encruzilhada entre o viaduto e a praça, que dava no teatro a fazia se sentir num palco. Todos os holofotes apontavam para ela, ainda que ninguém percebesse.


Como todos os outros dias, se encaixou num canto embaixo de uma árvore. Precisava performar a modéstia feminina de quem finge timidez. Apoiou seu rádio no muro, apertou o botão para começar sua música e iniciou seu espetáculo. 


Dançava e cantava lindamente, para qualquer um que passasse. Cumprimentava quem olhava em sua direção e se aquecia com cada sorriso devolvido. Sua dança era delicada, um passo para frente e outro para trás, sem muita pretensão de nada. Foi ali pelo final do segundo ato que finalmente parou de sorrir e percebeu que estava em silêncio.


Dois tapas no rádio e nada, ficou encarando aquela máquina perplexa com sua distração. Talvez as pilhas tenham acabado, talvez o rádio tenha cansado da sua rotina. Repassou cada interação até aquele momento. Será que hoje foi especial? Não sentiu nada de especial. Ninguém falou com ela mais do que nos outros dias, nem riu dela, nada foi extraordinário. 


Passou então a se perguntar se o rádio nunca havia funcionado. Será que todos os dias ela chega naquele canto e dança apenas ao som da própria voz? Como pode ainda assim todas aquelas pessoas sorrirem para ela? Agora já era tarde, tinha certeza que os antigos sorrisos simpáticos eram risadas da louca que dançava ao som de um rádio quebrado.


Depois do chilique, lembrou que ainda estava sendo observada. Chega a ser injusto que ninguém a tenha visto linda se arrumando na janela, mas todos olham quando ela descobre a farsa do rádio. Tímida, colocou o rádio de volta no muro e, sem saber o que fazer, começou uma dança mansa, não ensaiada. 


Para compensar a pequenice dos passos, cantou mais alto, agora consciente do silêncio ao seu redor. Cantou uma música nova, dançou uma dança nova. Sorriu mais uma vez, e dessa vez até deu bom dia, boa tarde, boa noite.


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