milagre
Eu tenho duas famílias. Uma delas é intensa, carismática, unida, e eu me sinto sufocada todos dias. Minha outra família é distante, machucada, misteriosa, e eu adoro todos os meus contatos com eles.
Pode ser sobre ancestralidade, pode ser que eu me sinta mais próxima porque apenas uma das minhas famílias entende o que é se sentir avulsa, falar com um sotaque que ninguém sabe de onde é, ser triste e não poder falar sobre isso.
Minha tia decidiu que queria passar meu aniversário comigo. Na véspera, ao cair da tarde, ela perguntou se eu tinha planos para meu dia especial. O que é mais estranho: a pergunta ou o fato de que eu não tinha planos para meu próprio aniversário?
Dessa forma estranha, combinamos um almoço. Ela me deixou escolher, deixei meu pai escolher, ela não gostou e optou por um restaurante muito mais caro e sofisticado ao lado da casa dela, do outro lado da cidade para nós.
Minha tia é símbolo de superação. Filha de refugiados ciganos, passou fome durante a infância, aprendeu português com muita dificuldade, enriqueceu em medidas completamente absurdas, se tornou a primeira mulher a fazer tudo o que fez, casou-se com um homem 11 anos mais novo que satisfaz todos os seus caprichos e serve para tudo que ela o usa. Minha tia é uma mulher como poucas.
Minha tia é canceriana. Sensível, doce, carente, sempre sozinha e sempre buscando afago e atenção. Ela não conta, mas sabemos de tudo isso mesmo ela nos lembrando sempre de todas as suas conquistas e toda sua força.
Combinamos de nos encontrarmos no restaurante às 13h, minha tia chegou lá 12h20. Ela sempre foi adiantada, uma vez até chegou antes de mim no meu próprio aniversário. Há dez anos exatamente, ela abria o salão de boliche para minha festa de 15 anos, eu cheguei uma hora depois.
Chegamos no restaurante às 13h15, sempre nos atrasamos para tudo, faz parte do fardo de ser uma família carismática. Todos os personagens do nosso círculo são obcecados com a própria persona e com grandes entradas triunfais, não sabemos manter combinados, precisamos nos destacar.
Chegamos e ficamos na rua por mais 20 minutos esperando meu cunhado que estava procurando lugar para estacionar. Ninguém pensou em entrar para ver minha tia. Achamos que ela estava com a filha dela, minha prima quatro anos mais velha que eu.
Vimos minha prima chegar de carro e entramos em pânico. Minha tia estava sozinha no restaurante sabendo que estávamos todos parados na calçada. Minha mãe, a mais simpática de todas, entrou para fazer companhia.
Durante o almoço, o assunto surgiu. “Sempre tenho a companhia do meu celular” minha tia nos tranquilizou. É impressionante como uma mulher tão admirável, tão madura, precisa também recorrer ao celular.
Minha tia também é minha madrinha. Num outro ato de carência minha tia disse a minha mãe “você chamou apenas suas amigas e eu para sermos madrinhas”. Minha mãe não retrucou, talvez por não ter ouvido, talvez por não saber responder ou por não entender. Eu entendi, eu sempre entendo a carência injustificada da minha tia.
Desde pequena, minha tia foi sinônimo de elegância. Ela era a mãe que eu queria ter tido, e tive por algum tempo. Por vezes, quando a vida dos meus pais se complicava demais, minha tia me assumia. Mais um dos efeitos de ser interessante demais para ser uma família funcional.
A vida na casa da minha tia era especial. Horários certos para comer, à mesa, com pratos e talheres bonitos. Uma performance de feminilidade e felicidade que me agradavam demais e que eu nunca tive. Lembro-me sempre de usarmos perfume para dormir.
Toda a elegância, doçura, sofisticação, vulnerabilidade e força da minha tia eram resumidas em sua fragrância. Sempre o mesmo cheiro, sempre floral, arejado, fresco, misterioso. Um cheiro reconfortante que mantinha a distância calculada de uma mulher que quer continuar sendo perseguida. Durante minha vida, aprendi muito sobre perfumes, sempre buscando a fragrância da minha tia.
Hoje, fiz 25 anos, e com isso veio a resposta da minha pergunta eterna. Minha tia me deu um perfume, o que ela já fez antes, mas agora com um adendo mágico: “esse é o perfume que uso todos os dias”. Não acreditei, era bom demais para ser verdade, como pode ela me revelar seu segredo mais cativante assim, apenas de presente.
Estava ansiosa, no carro borrifei o perfume em meu braço para testar, queria desesperadamente que o mistério fosse desvendado. Não gostei do cheiro, estranho, cítrico, não era minha tia.
Cheguei em casa, conversei com meus pais, cobrei atenção de quem já não me devia nada, chorei por não ser amada como gostaria, reiterei para todos que ainda consigo muito mais do que tenho. Me recolhi à minha cama, contemplando minha juventude e, assim do nada, numa inspiração profunda que precede um suspiro enorme, senti ela, minha tia. Afinal, o perfume realmente era o mesmo, eu é que não sabia que também era.
Como um milagre, me descobri até nas fraquezas.
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