taça
Jogada na cama assistindo uma comédia romântica, curtia um vinho rosé. Vênus, planeta da sensualidade, também é o planeta dos prazeres, segundo a astrologia. Ela, taurina, sempre cedia a pequenos prazeres, assim foi parar naquela posição.
Ria e se deleitava admirando como alguém pode descrever o amor de forma tão leve quanto numa comédia romântica qualquer. Ela encarava aquele casal, complexo o suficiente apenas para durar uma hora e meia, no máximo duas. Diferente dela que complicou demais, o enredo demorou seis anos para se desenvolver.
Admirando o galã da década passada e o padrão de beleza já ultrapassado dos protagonistas, se perguntava se o problema era ela, como qualquer outra pessoa se pergunta depois de uma desilusão amorosa. Não deixou barato, levou direto para a terapia.
Ficou presa analisando minuciosamente cada pensamento que cruzava sua mente “será que ninguém mais vai me amar?” “por que eu não consigo amar?”. Anotava tudo, agora a comédia romântica servia apenas de som ambiente para mais um surto. Fazia dois meses que se acostumara a interromper sua vida para analisar sua vida.
Duas páginas depois, sentiu-se leve novamente, voltou um pouco o filme para a última parte que prestou atenção, como se já não tivesse decorado todas as falas. Focou completamente em voltar a apenas ser, sem pensar tanto sobre si mesma.
O filme continuou passando, sua taça, cheia até a boca, estava para lá da metade. Relaxou, conseguiu rir de novo com o filme. Nesse momento de plena calma, confiou que a taça poderia ficar apoiada na cama por dois segundos, enquanto ajeitava sua postura já decadente.
Esticou os braços para empurrar seu corpo meio milímetro para cima, apenas para recolocar a cabeça no travesseiro. Não pensou tão bem no seu movimento e acabou deixando cair a taça. Muitas coisas inéditas aqui.
Pela primeira vez, pelo menos em um bom tempo, não pensou tão bem antes de qualquer coisa. Não sabia se ficava orgulhosa ou decepcionada consigo mesma. Seu impulso foi, mais uma vez, anotar tudo para a terapia, mas dessa vez resistiu, preferiu ficar um pouco mergulhada naquela sensação, sem olhar para os lados, nem para dentro.
Também inédito foi o acontecimento em si. Nunca quebrou uma taça, sempre achou ridículo o medo - que nunca foi dela - de quebrar uma taça. Afinal, ela é prudente, cautelosa, responsável, jamais quebraria uma taça. Ele já quebrou uma taça.
Ele quebrou uma taça importante, na casa da tia dela, justo no dia que ela o apresentou para seus familiares. Ela nunca quebrou taça nenhuma, muito menos na presença dele, que sempre foi tão desastrado.
Imersa na própria tranquilidade, felicidade, risada e tantas outras sensações que não sentia há tanto tempo, ela quebrou a taça. Logo ela, que achou que jamais faria isso, ou pelo menos nunca numa situação tão comum.
Assistiu o resto do vinho derramar pelo chão do quarto, viu os cacos de vidro no chão, sua mente estava finalmente vazia. Sem pensar, agora pela segunda vez na vida, pisou nos cacos descalça mesmo. Sentiu os pequenos cortes no pé como uma catarse. Finalmente quebrou alguma coisa, e não qualquer coisa, uma taça, uma de suas favoritas.
Completamente em êxtase, deliciava-se com a sensação de completa irresponsabilidade e inconsequência. Agora de pé no meio do quarto, olhava para o chão e assistia o sangue de seus pés se misturar com o vinho rosé, como um rio encontrando com a água salgada do mar. Não sabia se seu sangue seria o rio ou o mar, mas já não se importava.
Dançava pelos cacos de vidro, pisava com força na taça numa tentativa de aumentar ainda mais sua loucura. Seus pés não eram mais suficientes, tirou a roupa e deitou no chão. Rolava pelos cacos de vidro e se sentia completa finalmente. Cada corte microscópico ou não em sua pele era um símbolo de sua vitória. Finalmente venceu a guerra e queria as cicatrizes para mostrar.
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