cabaré

 Viajou para a cidade que mais amava no mundo. Seus amigos também estavam lá, todos para comemorar seu aniversário num esforço muito evidente de garantir que ela não se sentiria sozinha, não esse ano, não depois de tudo que aconteceu. 


Estava tranquila, se sentia bonita e sabia exatamente o que faria. Sua vida estava cada vez mais próxima daquela com a qual sonhou tanto tempo antes, cada detalhe estava perfeito. Ainda assim sentia-se culpada pelo que perdeu.


Um dia antes de seu aniversário, como de costume, saiu para comemorar. Ela, que facilmente era seduzida pela quebra de expectativa, adorava a ideia antisupersticiosa de comemorar o que não chegou. O problema desse ano é que ela era finalmente uma só. Nenhuma extensão dela mesma para manter no dia seguinte. O que seria dela quando o relógio tocasse meia noite? 


Dito e feito: no dia seguinte - seu dia - dispensou os amigos e ficou perambulando aquele quarto de hotel. Estava viciada em ser sozinha, individual, única. Desde que se tornou adulta, nunca teve antes essa necessidade. Estava sempre acompanhada, a mesa sempre era para dois, ela sempre teve ajuda para carregar as compras pesadas sem ter que pedir para um funcionário. Agora finalmente entendia que o mundo realmente foi feito para que mulheres sempre estivessem acompanhadas de homens. 


Sequer avisou os amigos, eles sabiam que ela queria ficar sozinha. Estava viciada em se torturar, se testar, ver até onde vai sua tolerância para a dor recentemente descoberta de ser uma jovem mulher neste mundo. Não, ela não conhecia essa dor há dois meses atrás, todos os sintomas eram suavemente mascarados pelo remédio mais eficaz inventado: um homem que a amava. 


Se arrumou da forma mais teatral possível. A maquiagem pesada que aumentava ainda mais seus olhos, a roupa escura que destacava sua pele pálida e a configurava perfeitamente como uma ilustração qualquer de art nouveau. Estava ouvindo alguma música inapropriada quando seu celular se iluminou de forma perturbadora.


Era ele, que conseguiu estar no pior lugar no pior momento. Dizia alguma coisa sobre precisar vê-la para falar algo importante e ainda avisava que estava na mesma cidade. Indignada, claro, com sua chegada naquele lugar que era sagrado para ela e apenas ela, mas curiosa com o que seria tão importante, respondeu falando que poderiam se encontrar. Meses antes, foi ele quem disse que não queria mais contato algum com ela, de qualquer forma. Ainda assim foi ela que cortou esse contato de vez, algumas semanas depois. Ficaram de combinar como se veriam no avançar da noite, do aniversário dela, sem nem sequer um desejo de felicidades.


Saiu pelo bairro boêmio e encontrou finalmente um muquifo qualquer, onde ela e seu celular amaldiçoado seriam acolhidos naquela noite. Entrou na boate escura e vermelha com sua roupa extravagante e logo foi informada das regras: você escolhe uma sala, paga pelo tempo de permanência e faz o que quiser, não expulsamos ninguém. Bom o suficiente, embora tivesse calculado que pagaria tudo em dobro, um para ela e um para seu celular que carregava um passado.


Escolheu então uma sala e comprou logo o maior pacote: 5 horas naquela sala cheia de espelhos e plumas e couro e veludo, vermelhos e roxos e verdes e pretos. Combinava perfeitamente com sua roupa, tudo parecendo alguma cena cortada do filme Cabaré por ser sexual e perturbadora demais.

Entrou na Sala Cabaré e lá tinham alguns grupos de pessoas normais que, diferente dela, estavam curtindo a estética submundana com os amigos enquanto bebiam e se drogavam. Sentou no sofá de couro vermelho e ficou mexendo no celular, se perguntando porque estava jogando aquele dinheiro no lixo, se tudo realmente precisa ser um teste de tudo que consegue fazer sozinha.


“Onde você está? Estou com um amigo pela cidade e posso ir te encontrar para conversarmos.”


“Você não vai acreditar a loucura que eu fiz, e logo hoje” - tentou ser interessante, divertida, amiga talvez, já que o amor ela já não tinha.


“Se for muito longe podemos ir de metrô, mas te achamos.” - ele já não conseguia sentir nada por ela, nem dar a cortesia da curiosidade.


Passou o endereço da boate que estava ainda sem entender porque logo ele, sempre obcecado por evitar deslocamentos e gastos irresponsáveis, queria tanto vê-la se não queria sequer ter uma conversa alegre. Mais um tempo muito bem pago naquela sala escura e chegam dois homens. Um alto, loiro, vestindo uma jaqueta jeans clara e um sapato colorido o suficiente para presumir o resto de sua personalidade. O outro era ele, diferente do que ela havia deixado. Mais sério, ainda que com as mesmas roupas que ela havia escolhido ao longo dos anos para refletir perfeitamente o que ela enxergava como sua maior qualidade: uma masculinidade delicada, escondida atrás de um bom humor incomparável. Seu pai chamava de jovialidade, ela chamava de amor.


Ele chegou e logo se aconchegou ao lado dela no sofá de couro vermelho enquanto o tal amigo puxou um banquinho de veludo verde. Ele apoiava a cabeça na parede de espelhos e ficou largado como se aquele lugar fosse confortável para ele. Ela sempre ficou fascinada e revoltada com como ele conseguia parecer confortável em qualquer lugar. Agora que se dava o direito de odiar homens completamente, já que o seu a deixou, adorava lembrar de como era típico esse comportamento dele de se esparramar por qualquer canto em qualquer lugar, sem se importar se esbarrava nas outras pessoas. Aqui está o único erro, quando a perna dele chegou nos pés dela, encolhidos embaixo de seus joelhos, ele os recolheu de volta. Agora existia uma única pessoa no mundo capaz de constrangê-lo e essa pessoa era ela, que se orgulhou um pouco, ainda que para mascarar a tristeza de constatar a jornada dos seus sentimentos. Tentou mais uma vez ser descontraída, sempre ignorando o fato de que era seu aniversário para não pensar sobre o fato de ele ter ignorado a data.


“Afinal, o que você está fazendo aqui? E como me achou tão fácil?” - esperava uma resposta romântica ainda, talvez que ele imaginou que ela escolheria aquela entre todas as salas.


“Na verdade achamos o lugar legal e entramos na primeira sala que nos interessou, uma feliz coincidência” - pronto, mais uma coincidência entre todas as outras que insistiram em aparecer depois do fim para deixá-la com a impressão de que eles eram mais compatíveis do que imaginava. 


Ele se virou levemente para ela e contou alguma coisa séria, um segredo qualquer tão burocrático que não serve para nada na história de amor perdido que ela insiste em escrever. Sem saber o que fazer depois da notícia necessária e sem sentimentos, ficou ali, estarrecida. Ele também não sabia bem o que fazer com a presença dela, nunca soube. Levou o amigo justamente para garantir que teria um programa posterior, sabia bem da capacidade dela de prendê-lo em qualquer situação.


“E agora vocês vão fazer o que?”


“Vamos fumar um pouco, quer?” - a oferta veio do amigo loiro, que claramente não era íntimo o suficiente para conhecê-la e para saber que tal convite seria aceitado de imediato, gerando o maior sofrimento possível para aqueles dois.


Uma, duas, três rodadas e os três estavam a gargalhar. Isso era fácil entre eles, sua dinâmica era divertida para todos ao redor. Ela se surpreendia que agora ele fumava com o mesmo prazer que ela enquanto ele se deslumbrava com como agora ela fumava tão mais do que quando ficaram juntos pela última vez. O amigo apenas observava aqueles dois e eles sabiam o que ele pensava “eles têm química”. Há muito os dois haviam percebido que química é uma coisa boa para prender duas pessoas que se fazem mal, ainda que estejam sempre sorrindo. 


Mais cedo do que desejado por ela, os dois decidiram sair para explorar outra sala. Ela não queria ir, tinha contratado o plano de 5 horas que ainda estava rodando e só agora a sala havia ficado vazia de estranhos. Ficou com as bolsas deles e deixou os dois curtirem o resto da boate, afinal, ele já não tinha mais nenhuma obrigação com ela, ninguém mais tinha.


Se viu sozinha finalmente, isolada de qualquer pessoa que pudesse colocar em risco sua autoflagelo em forma de introspecção. Sentada, ainda no celular, começou a música que tanto a fazia pensar nele depois do fim. Um pop meio eletrônico falando daquela que ficou para trás enquanto o grande amor da sua vida já encontrou um novo amor. Decidiu seguir o ensinamento da música e dançar sozinha. 


Naquela sala escura com sofá de couro vermelho, paredes de espelho, bancos de veludo verde, com penas azuis espalhadas e restos de roupas glamurosas e baratas por todo o chão preto de borracha, ela rodopiava e rebolava como se quisesse seduzir alguém. Olhava para o espelho com um ar misterioso, maléfico, um olhar de mulher meio tigresa de Caetano que ela ainda estava descobrindo. Até agora, já velha e um pouco usada, sua sensualidade nunca precisou ser explicada, já que foi ele quem a descobriu. Exercitava sempre que podia essa habilidade que estava nela, mas que ainda era dele.


Na ultima estrofe da música, ela girava sem parar. Um pouco alterada pelo que havia fumado, ria incessantemente e girava por aquela sala imunda. Não estava no canto, não via ele com a outra, mas sabia que existia, sabia que estava reclusa. 


No último toque da música, como se numa coreografia de musical, parou de frente para o espelho, numa pose perfeita, com os braços para cima, as pernas levemente abertas e o olhar fixo para ela mesma. Nesse momento, seu alarme tocou, deram as cinco horas e ela estava sozinha naquela sala. Podia sair finalmente, cumpriu sua pena. Aguentou o aniversário sozinha, sem ganhar nenhuma comemoração, nem de desconhecidos, nem da pessoa que mais a conhecia no mundo. Olhou para as bolsas no sofá. Não conseguia cumprir sua profecia, tinha que devolver as bolsas daqueles dois homens que não agregaram em nada sua noite além de garantir uma energia melhor do que a que teria apenas com a bebida da boate.


Ligou para ele, enfrentado o nome de contato e a foto que havia colocado meses antes quando ainda podia amá-lo, mas nada de atender. Vestiu as duas bolsas e decidiu sair pela boate. Medida inútil, uma vez que teria que pagar para entrar em qualquer uma das outras salas.


Pensava em sua própria estupidez de ter aceitado cuidar de algo dele e ter mantido essa promessa, enquanto ele que deveria cuidar dela a quebrou sem pestanejar. Encarava aquelas bolsas e sentia o peso de sua decisão. O tempo e a juventude perdidas num relacionamento fadado ao fracasso simplesmente pela ausência de desejo ou ambição das duas partes em ficar ali. 


Ela nunca quis um único amor para a vida toda, foi o que disse para ele quando ele se declarou, ainda quando tinha poder na relação. Racionalmente, ela sempre soube que era quem segurava as rédeas. Mais bonita, com a carreira mais promissora, mais experiente, mas seu amor falou mais forte. Com o passar dos anos foi fazendo tudo que podia para garantir que ele seria o mais bonito, arranjou para ele a carreira promissora, deu a ele toda a experiência que tinha e se permitiu assumir o papel de donzela em perigo. Deixou ele salvá-la por anos, até que ele pudesse se cansar de se doar tanto a alguém que se sacrificou no sigilo. 


Ele não teve a elegância dela de esconder os esforços. Talvez ela não tenha tido a esperteza dele de anunciar todas as vezes que o deixou passar na frente. Agora a mesa estava virada, ele o coitado que teve que cuidar de uma mulher por anos, mesmo sendo mais bonito e melhor sucedido, enquanto ela era a sanguessuga que mesmo depois de tudo isso ainda falava em tempos antigos quando ele precisava dela. Finalmente para ela o feminismo saía do papel.


Largou as bolsas ali no chão e saiu correndo como uma criminosa, uma terrorista que larga a bomba para aniquilar toda uma sociedade logo após sua retirada. Esperava uma destruição tão avassaladora quanto o amor que uma vez sentiu.

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