retorno
Ela acordou de madrugada, ainda perturbada com os sonhos que tem tido. Olhou no celular, eram 3h da manhã, como havia se programado. Colocou a roupa que estava pensada há mais de um mês, pegou as malas que acabara de fechar e foi chamar o táxi. Demorou 40 minutos para chegar ao aeroporto, duas horas para entrar no avião e 10 horas para desembarcar no seu destino.
Depois de tanto tempo, tudo estava diferente, ela estava diferente. Há apenas cinco meses saía daquele mesmo lugar cheia de promessas. Hoje retornava com mais perguntas, e muitas respostas para aqueles que a esperavam. Na saída da área de segurança, não havia ninguém. Cinco meses é muito tempo, claro, mas não é tanto quanto os dois anos que estão por vir. Ela sabia que a saudade ainda não era tanta para fazer seus pais abrirem mão de toda a praticidade da área de embarque apenas por um segundo de afeto no portão certo.
Finalmente encontrou seus pais, os abraçou, passou a viagem de carro contando sobre a viagem de avião. Chegou no seu antigo quarto, viu seu antigo animal de estimação e dormiu na sua antiga cama. O maior problema de começar uma nova vida é perder os confortos da vida antiga. Nenhum colchão comprado por uma jovem de 25 anos será tão bom quanto aquele que os pais compraram quando ela descobriu ter problema na coluna.
A agenda de retorno era cheia. Encontrar os amigos no bar, rever todos os familiares, cada um no seu ambiente. Tornar-se prodígio traz muitos jantares de anúncios que são irrelevantes, mas soam importantes quanto enrolados em pedigree.
No meio de tudo isso, o que ela mais queria era saber onde estavam aqueles que pararam antes de sua saída. Queria vê-lo, mais uma vez. Ela, que estava tão bem na nova vida que trilhava e que não conseguiria trilhar com ele. Não era orgulho, não era vingança, apenas sua incapacidade de esquecer. Tinha compaixão demais para não querer saber onde foi parar quem ficou para trás antes mesmo de ela poder fugir.
Sabia onde ele estaria, e decidiu ir atrás. Vestiu-se toda de preto, com a blusa do dia que se conheceram. Mais uma roupa que estava planejada há meses. Passou o mesmo batom de todos os outros dias importantes de sua vida e foi.
Perto do horário de saída dele, ficou lendo próximo do lugar onde ela o acompanhou tantas vezes, onde ela sabia que ele teria que passar. Decidiu tornar o encontro acidental, não queria acabar com o possível romance da situação com uma mensagem burocrática “estou de volta, quero te ver”.
Ficou lendo um livro qualquer, esperando ele passar. Ela sabia que ia demorar, só não sabia o que aconteceria depois. Eles não se despediram da forma bonita como gostaria, talvez por isso essa vontade de vê-lo, uma última vez, quem sabe. Ela queria que o final fosse tão bom quanto o meio. Digno de uma despedida de filme antigo, Casablanca ou aquele da Barbra Streisand com o Robert Redford. Ela precisava soltar uma fala tão enigmática e perturbadora quanto “your girl is lovely”.
Duas páginas do livro foram lidas no tempo de dois capítulos. Ela estava ocupada demais planejando seus próximos passos, o que ficaria melhor escrito no livro dela. Na sua mente, uma multidão os separaria por exatos 90 segundos até que ele pudesse caminhar até ela, que teria o olhar distraído de quem pensa mais do que age. Ele enxergaria toda a beleza dela, que ele perdeu, e, num cenário ideal, teria um pouco de pena de seu rosto tão delicado.
Foi pensando nisso que ele chegou, passou por ela, sem sequer notá-la. Não foi suficiente para ela, ela precisou ir atrás, se fazer percebida. O chamou no tom mais escandaloso possível, abandonando completamente o ar distraído que queria passar. Afinal, ela sempre pensou muito, mas também era boa de atitudes.
Ele olhou para ela como uma completa estranha. “Será que não me reconhece?” pensou, lembrando do tanto que havia mudado nesses cinco meses, enquanto ele estava igual. O cabelo, o corpo, o rosto, nada nela era igual àquela que ele machucou. Essa mulher estava completa, ele não enxergou nela o buraco que deixou.
A vitória de se perceber melhor também causou nela um medo. “Como ele terá pena de mim se sabe que eu estou bem? Preciso parecer pior”. Apenas agora ela começava a entender que estava lá para ser salva e, se fosse forte como pensava, para recusar o cavalheirismo.
Entendendo quem era, ele se virou, a cumprimentou de forma gentil, um abraço frouxo, de quem tem medo de se aproximar. Teve vergonha de admitir que não a reconheceu, mas achou melhor do que enxergar mais uma vez toda a beleza que perdeu.
Ela sabia que, para ele, sempre foi primeiro bela, depois interessante. Quando deram o primeiro beijo, ficou surpresa e indignada que ele parava de beijá-la apenas para dizer o quanto era bonita. Ela sabia que a beleza que ele enxergava nela não era a beleza que ela queria carregar. Ainda com os mesmos 25 anos, ela não queria mais ter o rosto delicado, os dedos macios que tocaram aquele rosto com tanto carinho.
Embora quisesse constantemente se provar mais forte e bruta do que ele, ela ainda tinha a mesma face. Os olhos ainda eram grandes e pretos, o cabelo ainda era escuro, os lábios vermelhos e a pele pálida. Ela ainda parecia uma pintura renascentista ou a amada de um romancista qualquer do século XIX. Desse jeito, a pena era inevitável, mas será que o desejo também?
Com muito esforço, conseguiu dizer em tom de deboche “você não me viu?”. Ele, ainda envergonhado, achou melhor dizer que não. Depois de um silêncio de mais de 90 segundos, ele perguntou, finalmente, porque ela estava ali. “Queria te ver, você ainda está com ela?”. Não sabia que resposta queria ouvir.
Se ele não estivesse mais com ela, finalmente a vitória seria sua, afinal, ele a trocou por alguém que foi embora em poucos meses. Ela sabia que, se ele estivesse sozinho, a quereria de volta, como sempre fez, e tinha medo de não ter forças para rejeitá-lo, como nunca teve.
Pensou ainda que se ele ainda estivesse com ela, sua tentativa de um final romântico seria ainda mais patética. Ele sairia daquele lugar, onde conheceu a outra, e contaria para ela tudo que aconteceu, e os dois brincariam juntos sobre como ela, a antiga, ainda não o tinha superado. Ela não queria que ele pensasse isso, ela tinha sim o superado.
“Antiga” era uma ideia que a incomodava. “Como algo tão longo pode se tornar passado tão rápido?” dizia que esse era o motivo de sua vinda. Ela queria lembrá-lo que ele jamais conseguiria esquecê-la, ainda que quisesse por tudo reafirmar que o esqueceu.
Enquanto ela já não sentia nada quando o via, sabia que para ele era difícil controlar o desejo. Queria ser vista o máximo possível, mas não queria correr o risco de ouvi-lo. Ela sabia que ele se apaixonou por seu exterior, enquanto ela amava sua voz e seus trejeitos. Considerou-se sortuda, ele que tinha o sorriso mais bonito que já havia visto, já não sorria como antes. Talvez tenha sido a maturidade, talvez tenha sido a dor que descobriram juntos, talvez ele só não guardasse mais aquele riso para ela. De toda forma, ela era sortuda.
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